Vivemos na Síria um reino de silêncio
Uma vigília solidária com o Egipto levou à detenção de uma das mais importantes dissidentes em Damasco. Na esquadra,Suhair Atassi foi agredida e ameaçada de morte. O regime "não suportou a luz das velas de uma concentração pacífica", diz ela ao P2, muito menos irá tolerar uma manifestação, no dia 15, para derrubar o Presidente Bashar al-Assad. Por Margarida Santos Lopes
Sou presidente do Fórum Jamal Atassi, grupo que existe apenas no Facebook, depois de nos ter sido negada existência real e legal. O fórum reclama reformas políticas na Síria e o fim das leis de emergência que suspendem os nossos direitos constitucionais desde 1963.
Não é fácil ser uma activista na Síria. Neste reino de silêncio, as autoridades não suportaram sequer a luz das velas de uma concentração solidária e simbólica, como a que um grupo de homens e mulheres tentou organizar, a partir 29 de Janeiro, em apoio dos egípcios livres.
E que dizer dos "dias de ira"? Na Síria existe uma dupla aterradora: por um lado, a fúria contida, que advém da deterioração das condições de vida, da corrupção, do monopólio, para não falar da repressão das liberdades, das bocas amordaçadas, dos despedimentos laborais, da proibição de viajar para o estrangeiro, apenas por divergência de opinião quanto ao regime; por outro, o medo das medidas de punição dos que se atrevem a contestar, medidas que variam entre perseguições e convocações aos serviços de segurança, interrogatórios, pressões exercidas sobre familiares, detenção durante anos e anos, com acusações forjadas à luz de um Estado de emergência que desgastou o país e de um sistema judicial nada independente, que se submete aos órgãos de segurança.
Há uma fúria oculta que ferve no peito. Um gemido abafado. Um pavor cujas paredes alguns tentam quebrar. Foi o que aconteceu e o que acontece todos os dias. O que se passou a 4 e 5 de Fevereiro deste ano com apelos feitos através do Facebook para concentrações pacíficas? Fomos chamados para "um dia de fúria" por pessoas que, na sua maioria, vivem fora da Síria. Mas suportarão os que estão dentro do país que seja quebrada de uma só vez as barreiras de silêncio e de medo que se acumularam ao longo de anos, de décadas? As ruas fervilharam naqueles dois dias - mas fervilharam com elementos das forças de segurança, de todos os ramos. Elementos que, com uma violência brutal, lidaram com uma concentração de velas em solidariedade com egípcios livres.
Circula agora uma nova petição no Facebook para uma "revolução síria" contra o regime e um novo "dia de fúria", mas não passa, mais uma vez, de um convite virtual sem raízes sólidas na realidade do dia-a-dia sírio. Estes apelos virtuais não vão conseguir acender a chama da mudança que irá inspirar os sírios na busca de uma mudança genuína.
A verdadeira chama estará, provavelmente, noutro lugar. Por exemplo, numa manifestação espontânea, como a de 17 de Fevereiro, depois de a polícia ter espancado um empresário local. Nessa manifestação, as pessoas gritavam: "O povo sírio não será humilhado", "Vergonha, vergonha" e "Porquê, porquê?". O ministro do Interior interveio rapidamente, para controlar a situação e impedir uma escalada maior.
Esta chama também pode surgir do efeito cumulativo da solidariedade expressa ao povo líbio, a 22 e 23 de Fevereiro. Nessa altura, activistas foram atacados, verbal e fisicamente. As pessoas gritavam insultos: "É traidor o que reprime o seu povo." Alguns activistas foram detidos e admoestados para não se envolverem em futuras manifestações. Posteriormente foram libertados.
Intifada da cidadania
Creio, sinceramente, que estamos a testemunhar os primeiros passos para quebrar a barreira do medo que se apoderou de todos os aspectos da nossa vida. A Intifada do Egipto e, antes dela, a da Tunísia, trouxe esperança a todos os que sofrem sob o jugo de regimes autoritários, despóticos e corruptos, que monopolizam a política e as riquezas do país. A Intifada no Egipto e na Tunísia revelou que a aspiração à liberdade necessita de uma acção positiva em vez da passividade do espectador que cede diante de políticas repressivas por temer o desconhecido - que, contudo, jamais será pior do que a presente situação.
Aquela Intifada revalorizou o significado da palavra "cidadania". A esperança tornou a despontar. As pessoas compreenderam que podem, por si próprias, reaver a sua humanidade. Talvez, entre os regimes árabes, o sírio seja o último que tenha tentado subornar os seus cidadãos com algumas "doações" que não passam de migalhas que nenhum ser livre pode aceitar. Numa recente entrevista que deu ao Wall Street Journal, o Presidente Bashar al-Assad mostrou-se decepcionante e repleto de contradições. Como pode ele afirmar, dez anos depois de ter herdado o poder, que "ainda existe um longo caminho a percorrer" e que "temos de aguardar até à próxima geração para levar a cabo reformas"? E o que dizer quando ele admite que "não se pode reformar a sociedade ou as instituições sem uma mente aberta?"
Depois da morte do Presidente Hafez al-Assad, em 2000, foi permitida uma "Primavera de Damasco". Durante esse período, nasceram organizações da sociedade civil e movimentos democráticos, num clima de alguma abertura, ainda que parcial. Tudo não passou, porém, de medidas formais e limitadas até o filho herdeiro, Bashar, chegar ao poder. Poucos meses depois, rapidamente começaram as detenções, as restrições e as proibições, para impedir que fosse criada uma verdadeira sociedade civil. O estado de emergência foi renovado.
Face ao isolamento, o movimento da "Primavera de Damasco" precisava de uma base social, indispensável, sobretudo de jovens, e de novos instrumentos e mecanismos de acção. Esta estreita margem de abertura parcial foi violada numa altura em que necessitava de um maior espaço de liberdade que lhe desse oportunidade de crescer, amadurecer, desenvolver. Pelo contrário, foram proibidos os fóruns e encerraram compulsivamente o último que restava, Fórum Jamal al-Atassi para o Diálogo Nacional e Democrático, em 2005, uma semana após a detenção dos seus dirigentes. Um dos membros continua detido.
O Fórum Jamal al-Atassi insistia nos convites para os seus debates, no primeiro sábado de cada mês, embora tivesse a certeza de que a proibição seria inevitável. O objectivo era manter vivos a liberdade de expressão e o diálogo, apesar das repetidas cenas de uma densa presença de órgãos de segurança para afugentar os poucos que continuavam a participar. Era natural tentarmos que o fórum continuasse vivo, mesmo que fosse por meio do Facebook, para defender a sua existência e legitimidade. As autoridades não suportaram este regresso, ainda que num espaço virtual.
Na nossa última concentração, em 2007, quando contestámos a continuação do estado de emergência no 44.º aniversário da imposição destas leis marciais, fomos detidos mal desembocámos nos passeios em frente ao Palácio da Justiça. Enfiaram-nos num jipe e rumaram para a prisão de Adra. Pelo caminho começaram a largar-nos pela rua, em grupos de cinco.
As manifestações continuam proibidas. Jovens que ousam exprimir a sua opinião emsites e blogues permanecem atrás das grades da cadeia de Saidania, pagando com anos de vida uma palavra que escreveram. [É o caso da blogger Tal al-Mallouhi, presa em 2009, tinha apenas 17 anos, e que, em Fevereiro, viu um tribunal, numa sessão à porta fechada, agravar-lhe a pena por mais cinco anos, sob a acusação de espionagem].
Impedida de deixar o país
A Declaração de Damasco para a Mudança Nacional e Democrática, da qual também fiz parte, era uma aliança que juntou personalidades, partidos e instituições independentes, os quais, apesar das suas cores políticas, sociais e nacionais, estavam unidos pelo mesmo objectivo de mudança, democrática e pacífica. Dez dos seus membros foram detidos à força na sequência de uma reunião do conselho nacional, em 2007. Foram julgados numa farsa de tribunal, sob acusações completamente forjadas que carecem de qualquer fundamento legal.
Em Março de 2010, começaram a convocar-me ao Gabinete de Segurança do Estado. Aqui, ameaçaram-me de detenção e apreenderam o meu Bilhete de Identidade. Leram-me acusações e a própria sentença que eu receberia caso não encerrasse a página do fórum no Facebook. Um dia, pediram-me que levasse comigo uma pequena mala com o essencial, ou seja, preparavam-se para me deterem. Insisti em manter o fórum no Facebook e recusei a convocatória de segurança cujo objectivo era humilhar-me e fazer-me esperar durante horas e horas para depois me repetirem as mesmas ameaças.
Disse-lhes que tinham três opções: prender-me na minha casa; levarem-me a julgamento sem passar pela prisão; ou devolverem-me os meus documentos sem desrespeito ou ofensa. Foram precisos dez dias, ou talvez mais. Contactaram-me depois e restituíram-me o meu Bilhete de Identidade, mantendo a ameaça de detenção como uma espada por cima da minha cabeça que "gostavam de não ter de ser forçados a usar". Proibiram-me de sair do país.
"Um bicho, um verme"
Em 2 de Fevereiro último, quando os "serviços de informação" enviaram alguns marginais e foras-da-lei para atacarem os que se encontravam na Praça de Bab-Toma, em solidariedade com os egípcios livres, fomos agredidos e insultados. Naquele dia, em particular, estranhámos não haver polícias como era habitual desde sábado, 20 de Janeiro. Os elementos da segurança pediam os bilhetes de identidade aos jovens e registavam os seus dados, procurando aterrorizá-los. Estranhámos também que os poucos elementos da segurança não usassem as câmaras de vídeo que costumam usar durante as concentrações.
Com a minha câmara fiz algumas fotos antes de os "bandidos" ameaçarem partir a máquina. Duas mulheres que estavam entre eles passaram das ameaças a injúrias desprezíveis. Depressa começaram os espancamentos. Corríamos e elas corriam, batiam e insultavam. Os agentes da polícia na esquadra que ficava na mesma praça não passavam de meros espectadores. Entrámos na esquadra e apresentámos uma dupla queixa: a primeira, contra os elementos da segurança que enviaram "marginais e bandidos" para nos enfrentar na rua e pôr fim a uma concentração pacífica e solidária; a segunda, contra os polícias que estavam a ver tudo e nada fizeram.
Na esquadra, os agentes desapareciam e reapareciam. Pediram aos demais presentes que abandonassem a sala. Queriam falar comigo e tomar notas. Decorrida talvez meia hora, entrou um homem, vestido à civil, juntamente com outros dois. Recusou identificar-se e fechou a porta. Acusou-me de ter "sites infiltrados por Israel". Disse-me que eu "não passava de um bicho" que trabalhava contra o meu país. Atacou-me porque eu respondia a cada palavra dele. Bati na sua mão quando esta acertou no meu rosto. Deu-me então uma violenta bofetada no lado esquerdo da face. Continuou os insultos.
Abriu depois a minha mala com violência, retirou o telemóvel e a máquina fotográfica, e disse-me que eu estava presa. Saiu da sala e, quando regressou, fez-me uma última ameaça. A partir daquele momento, deveria esperar que, a qualquer altura, um deles me matasse, para assim "livrar a pátria de um verme da minha laia".
Quando fui autorizada a sair, chegou o chefe da esquadra, que me devolveu os documentos, o telemóvel e a câmara - depois de ter apagado algumas fotos. Despedi-me assim: "Que miserável é esta polícia "ao serviço do povo"." Fui apresentar queixa de uma agressão na rua e acabei por ser agredida e ameaçada de morte!
A 3 de Fevereiro, impediram outra concentração pacífica, de protesto contra o aumento dos preços e a usurpação e espoliação praticados pelas duas únicas operadoras de telemóveis, Siriatel e MTN. Detiveram um jovem romancista, Abdel Nasser al-Aid, durante uma semana, só por ter participado numa manifestação proibida. Quando eu levava bandeiras sírias para os protestos contra as duas operadoras, um taxista perguntou-me: "E no que diz respeito ao gasóleo?" Desafiei-o: "Queres juntar-te a nós?" Ele respondeu: "Os meus filhos apenas me têm a mim como fonte de sustento. Não posso ir parar à prisão."
Noção de caos
Este é o estado das coisas. Não quer dizer que vá permanecer assim. Mas vai ser precisa uma acção cumulativa que teremos de levar a cabo de forma insistente. Na Síria, o regime quer criar uma noção permanente de "caos" (ou medo do caos), afiançando constantemente que só o poder actual garante a estabilidade e a segurança do país. Isto será verdade? Pode esta estabilidade ser verdadeira e profunda quando grassa o medo, a opressão, o desespero e o sentimento de injustiça?
Sim, existe diversidade religiosa, étnica, nacional e sectária na Síria, e isso enriquece o país. Mas e a unidade nacional? A que pediram os pioneiros da "Primavera de Damasco" interessados numa conferência para o diálogo nacional com vista a um contrato social entre todas as correntes e componentes da sociedade? A resposta das autoridades veio sob a forma de detenções, restrições, proibições e marginalização. Será esta a estabilidade de que falam?
Como pode haver uma estabilidade verdadeira se continuarem os privilégios políticos e sociais de que gozam os que detêm o poder? Isto faz crescer o fosso entre as pessoas e arreda a sociedade da vida pública. Aumenta assim a necessidade de mudanças antes de chegarmos a uma situação muito mais grave. O regime sírio fez com que as pessoas se preocupassem com o seu ganha-pão. Até já é interdito falar em corrupção ou falta de independência da justiça. Esta é a verdade! Mas quem saqueou o país? Quem se apoderou dele como fosse uma propriedade?
Sem liberdade e democracia, poderemos alguma vez sair numa manifestação pública para protestar contra a pobreza, contra a fome, contra a corrupção, contra o monopólio? É indispensável que possamos exprimir a nossa opinião e a nossa cidadania, para protestar contra tudo isso, para sermos autênticos e termos o direito a uma vida condigna.
A partir de uma troca de mensagens, via e-mail e Facebook, com Suhair Atassi. O P2 agradece a Badr Hassanien, da Editora Civilização, pela generosa tradução do árabe para português da principal entrevista com Suhair Atassi.
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